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REPORTAGEM - A guerra do além-mar ainda continua?

A guerra do além-mar continua?

A guerra colonial originou grandes oscilações em Portugal nas décadas de 60 e 70, alguns dos aspetos mais relevantes e chocantes deste fenómeno, são abordados nesta reportagem, onde o testemunho de um ex-combatente português, demonstra a crueldade e sofrimento que todos os soldados sentiram, ao lutarem nas antigas colónias marítimas.

A guerra do ultramar já terminou á 44 anos, mas não deixa por isso de ser esquecida, pelos antigos combatentes das colónias, que deram as suas vidas e sonhos pelo país.


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Fig-1 Embarque dos soldados.

O Estado-Novo

A 28 de Maio de 1926 acontece em Portugal uma revolução militar com o objetivo de acabar com a primeira República e instaurar no nosso país uma ditadura de índole militar.  Em 1928 chega ao poder o homem, com a pasta de ministro das finanças que iria mudar e marcar de forma nunca antes vista, a história de Portugal.

Em 1932 António de Oliveira Salazar assume a pasta de Presidente do Conselho, apenas um ano depois nasce em Portugal o Estado-novo, baseado na constituição de 1933. Seguiram-se 41 anos de uma ditadura implacável, que reprimiu o povo português e atirou-o para uma guerra que iria deixar marcas que ainda hoje marcam um número significativo de portugueses.

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Fig-2 António de Oliveira Salazar-1º Ditador Português.

O inicio da guerra

Embora já tenha passado algum tempo, a guerra colonial continua bem presente na memória dos portugueses. Tomou lugar no período entre 1961 e 1974 nas antigas colónias de Moçambique, Guiné e Angola. Como diria Salazar a dada altura: “Para Angola, rapidamente e em força.”.

As forças opositoras neste conflito, foram as Forças Armadas portuguesas e as faccões rebeldes organizadas, fundamentadas pelos movimentos de libertação, que os motivavam a obter e defender a independência das colónias portuguesas, obtendo então a autodeterminação. Em contraste na face portuguesa, a guerra era baseada nos conceitos de defesa do território nacional, pois encarava as colónias como territórios portugueses, garantindo assim a pluricontinentalidade e multirracialidade. Crenças altamente valorizadas pelos líderes Portugueses.

Os líderes Salazar e consequentemente Marcelo Caetano, defendiam afincadamente as políticas coloniais, e embora tenham sido mais tarde, aconselhados e pressionados a libertarem as colónias, proclamando a sua independência, por entidades e potências internacionais, recusaram-se a fazê-lo até ao último momento. Com o fim da segunda grande guerra mundial em 1945, registou-se o aumento no número de revolta e ambição por independência, como por exemplo em Macau, pondo em perigo a permanência do Império Colonial Português.

Um aspeto que também representou uma desvantagem para os soldados portugueses, foi o facto de terem recursos escassos, poucos soldados capazes de combater e meios e veículos desgastados e ineficazes, devido ás condições adversas a que os mesmos estavam sujeitos.

Os feridos do Ultramar

Ao longo de todo o período em que a guerra tomava lugar, foram ceifadas na sua totalidade a vida a mais de 8000 soldados que foram destacados para missões em África, distribuídas pelas várias frentes. 

De acordo com a Associação de Deficientes das Forças Armadas acredita-se que aproximadamente 30 000 soldados sofreram em combate ferimentos tão gravosos, que acabaram mesmo por adquirir algum tipo de deficiência. 

Mas estes números são referentes aos deficientes a níveis físicos, pois segundo diversos estudos e análises, a nível psíquico o número de vítimas pode alcançar os 140 000 com stress e traumas de guerra. Um fator que também influencia estes dados, são os soldados desaparecidos em combate, que representam certamente uma quantidade reveladora.

Testemunhos de guerra

Apesar de nós termos uma ideia de como a generalidade dos portugueses se sente em relação à Guerra do Ultramar, decidimos aprofundar ainda mais o tema e para isso mesmo, fomos ao encontro de um ex-combatente, o senhor Albino Quintela, que disse que o local onde passou a guerra colonial e combateu esperançosamente com a vontade de voltar, foi Angola.

A convocatória

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Fig-3 Albino embarcou no Paquete Uíge.

Quando questionado sobre, o que sentiu ao perceber que foi destacado para combater na guerra colonial, Albino Quintela revelou que foi consumido por uma grande tristeza por ver-se  obrigado a abandonar a família, e uma sensação de impotência, relativa ao facto de ser obrigado a ir, mesmo contra vontade. “Senti tristeza por ter de abandonar a família.” assumiu o ex-combatente. 

Quando questionado sobre a viagem o mesmo referenciou, “No dia em que fui para Angola pela primeira vez, fui para Lisboa e de Lisboa embarcamos no paquete Uíge e a partir daí foram 18 dias de tristeza no barco até chegar ao destino.”. A viajem foi bastante incómoda e desconfortante, devido aos constantes enjoos e em parte á longevidade da viagem, visto que nessa altura, as viagens  de avião eram raras.

A família de sangue e a família do sangue

Este é talvez um dos pontos mais sensíveis a todos os combatentes, e duma das questões que quem fala sobre o Ultramar coloca, como é que era possível estar longe da família? 
Albino, admitiu, “escrevia muitas cartas”.

Mencionou que embora fosse extremamente complicado ignorar as saudades e a vontade de regressar a casa, disse que uma maneira de aliviar esta dor que estava sempre presente, era tentar não pensar na família, nos seus entes queridos e ignorar o facto de querer voltar. 

Declarou também que escrever cartas ajudava-o a superar estes pensamentos, adicionando ainda que escreveu muitas cartas para ir estando em contacto com a família, mesmo longe de Portugal continental, na época. Mas apesar de deixar esta sua família de sangue na pátria-mãe, Albino fez amizades no local onde o sangue era derramado e  a vida humana era algo secundário quando comparado com a “defesa nacional” , nasce assim aquela que pode ser considerada a sua família do sangue. “Algumas para toda a vida, ainda tenho colegas que me visitam e eu visito a eles. De dois em dois anos fazemos um convívio dos colegas de lá, da nossa companhia.”, afirmou Albino.

Os pensamentos dos combatentes

Quando questionado sobre o que sentia durante a guerra, Albino destacou mais uma vez os sentimentos de tristeza, angústia e muitos mais, mas sempre focando o pensamento nas enormes saudades que sentia da sua família, da sua terra natal e da vida que antes possuía e que recordava com um sentimento nostálgico.  Falou, “senti tristeza e saudades da família.”.

Decidimos então questionar Albino se alguma pensou que não iria regressar, este assertivamente, confessou. “Muitas Vezes, muitas vezes, a gente trazia isso sempre no pensamento, que haviam constantemente guerrilhas a atacar.” 

No entanto e apesar destes sentimentos, Albino quando questionado sobre se alguma vez, se questionou acerca do porquê de estar ali, disse: “Não porque nesse tempo éramos obrigados, ainda era no tempo de Salazar, nós éramos obrigados a ir, não tínhamos nada que questionar. Era ir para a frente ou desertar!” Provando assim que, infelizmente, a “lavagem cerebral” imposta por Salazar estava a resultar.

Apesar disto Albino admitiu que tinha algumas distrações neste tempo de combate, “Quando arranjava um tempinho livre, escrevia um diário com os momentos mais infelizes das nossas passagens de lá, de Angola. Mas felizmente, vim com saúde. Prometi a nossa senhora de Fátima que ia a pé se viesse com vida e saúde, e foi o que prometi que cumpri.”.

 Através da escrita, o mesmo considerava que era uma ótima forma de passar algum tempo, e abstrair-se de todo aquele ambiente bastante ameaçador.

As memórias da tristeza

Albino divulgou que quando via colegas de batalha e bons amigos a perderem a vida de diversas maneiras com o decurso da guerra, era corrido por uma séria e pesada tristeza, revolta e dúvidas, pois pelo que mencionou, questionava-se incansavelmente, quando seria o dia em que perderia a vida, e se sobreviveria mais um dia.

Manifestou na sua resposta, “Muitas tristezas, é triste como a noite, pensávamos que amanhã seria o nosso dia.”.
Questionado sobre se algum momento lhe ficou gravado de forma permanente na memória, o ex-combatente referiu que tinha a memória repleta de acontecimentos e situações que o marcaram desde a sua ocorrência, muitos dos quais sobrecarregados com altos níveis de violência.

 Albino falou que alguns dos momentos mais traumatizantes e simbólicos, eram as emboscadas que de um modo inesperado, tiravam a vida a muitos soldados, sem que os mesmos tivessem grande tempo para reagir. Completando ainda, que presenciou a morte de muitos colegas ao seu lado, nessas mesmas emboscadas. Sendo por estas causas, que categoriza estes momentos como os piores que vivenciou no combate em Angola. Enunciou: ”Principalmente quando haviam emboscadas e eram mortos nossos colegas a sangue frio.”.

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Fig-4 As emboscadas eram uma das formas de ataque mais usadas pelas guerrilhas.

O crescimento

A guerra e todos os seus momentos e envolventes obrigaram o combatente a crescer rapidamente. Ao recordar os momentos do passado, aclarou, “Sim, claro cresci como pessoa, a gente aprende sempre. Isto de viajar para longe é um mundo novo, é uma experiência que a gente aprende sempre. E cresci como pessoa, porque nós éramos jovens quando íamos para lá com 20 anos, ao sairmos de lá com 22, crescemos sempre.”.

Com a final da guerra Albino não regressou logo a Portugal e o próprio explica como foi este seu pós-guerra: “A seguir à guerra eu fiquei em Luanda, capital de Angola e daí fui para a África do Sul, para ver se governava a vida, porque cá em Portugal era uma pobreza autêntica”.

Devido ao facto de Albino ter obtido o visto de permanência em Luanda por apenas 3 meses, viu-se obrigado mais tarde a regressar a Portugal, acabando depois por viajar para França com base numa proposta de trabalho, mantendo-se lá por um período de 10 anos. Regressando definitivamente apenas após ter alcançado uma vida mais estável.

O tão aguardado regresso

Albino, disse que ao regressar a casa e reunir-se com a sua família e amigos sentiu muita felicidade e alegria. Um dos momentos mais felizes relativamente ao seu regresso, foi o facto de ter tido a oportunidade de abraçar os seus próximos. Considera que estar longe da família foi o que custou mais.

Albino é claro quanto à definição que dá à guerra colonial. O ex-combatente define a guerra como, “Era evitável, pois afinal de contas não tivemos lucros nenhuns com a guerra, com milhares de portugueses que ficaram paralisados, e muitos sem vida, era completamente evitável!”. Ao responder a esta questão apontou também que os conflitos e as guerras, não servem de nada e nunca levam a boas coisas.

Conclusão

A Guerra Colonial foi sem sombra de dúvidas um dos momentos mais negros da história do país. Este combate que colocou em confronto duas facções que apenas faziam o que lhes mandavam, os seus líderes, num jogo de poder pela liderança daquele pedaço de terra, que tal como qualquer outro nenhum valor tem, em comparação com a vida humana.

Este combate ceifou um elevado número de vidas de parte a parte, mas também acabou com famílias que viram os seus pais, maridos, filhos, netos, etc. Padecerem na curva da morte criada pelo sonho de um homem de ver Portugal ser do Minho a Timor.

António de Oliveira Salazar, criou um monstro que iria durar treze anos, mas que os seus efeitos iram permanecer guardados, em todos aqueles que lá estiveram e que a viveram de perto, durante os quarenta e quatro anos seguintes e de certo continuará a marcar estes durante o resto da sua vida. 

Mas a verdade é que esta guerra ameaça tornar as suas sequelas eternas, pois dos seus combatentes estes sentimentos, passaram para as suas famílias que viveram, a guerra à distância, que agora começam a ser transferidos para os seus netos que, apesar de nascerem já com a guerra Ultramarina como uma visão distante no tempo, sentem de alguma forma a herança que lhes é deixada e a responsabilidade de manter viva as memórias de uma guerra que não é esquecida e que nunca o deverá ser para bem de todo o país.

Não nos podemos esquecer também de todos aqueles inocentes que foram apanhados no fogo cruzado ou alvo de represálias, quer por uma ou a outra parte, só porque não queriam pegar em armas para lutar contra aqueles que consideravam irmãos, ou até mesmo, porque foram obrigados a pegar nas armas e a lutar mesmo contra a sua vontade.

Por isso acabamos esta reportagem com a esperança que Portugal não volte a ser mergulhado numa guerra destas e que todas as aprendizagens retiradas da mesma, fiquem para sempre guardadas na memória de todos os cidadãos individualmente e na nossa memória enquanto povo.

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Fig-5 Monumento de homenagem aos combatentes do ultramar, situado em Lisboa.



Um enorme obrigado a todas os soldados que combateram e perderam  as vidas na guerra colonial !

Os autores desta reportagem e os membros do blog Politicamente Incorretos, agradecem a disponibilidade do ex-combatente, senhor Albino Quintela Queirós, na participação e elaboração desta reportagem.

Tiago Queirós e Francisco Gomes                13/06/2018


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